Discute-se o fortalecimento dos sistemas públicos de educação durante seminário internacional

O debate aconteceu durante o seminário "Educação emancipadora e garante de direitos". Nessa discussão, destacou-se como principal desafio o crescimento da privatização da educação e da interferência de grupos empresariais nas decisões sobre a política educativa

Por Avanildo Duque da Silva, representante da ActionAid no Comitê Diretivo da CLADE e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação no Brasil

O debate sobre fortalecimento de sistemas públicos de educação, que se realizou durante o seminário “Educação emancipadora e garante de direitos: desafios para América Latina e Caribe”, realizado pela CLADE na Cidade do México no dia 11 de novembro, levou em consideração um cenário regressivo atualmente vivenciado na região, caracterizado por reformas educacionais que estão resultando em cortes brutais de recursos para o financiamento da educação pública, como se verifica no México e no Brasil.

Esse cenário de diminuição de recursos públicos para a educação, por um lado, favorece a perspectiva de educação enquanto bem individual ou mercadoria, em detrimento de uma perspectiva de educação enquanto direito humano, bem como fortalece a perspectiva de privatização dos serviços e sistemas de educação, a partir de um forte discurso de eficiência na gestão e na avaliação de desempenho dos processos educativos.

Cabe destacar que, apesar de todo esforço da sociedade civil para mobilizar novos atores e reforçar a luta por uma educação pública de qualidade para todas pessoas que estão no âmbito de atuação da CLADE e de outras regiões do mundo, a perspectiva privatista vem ganhando muita força, com o surgimento de novos atores, como as fundações empresariais, a exemplo da Fundação Gates, bem como o fortalecimento de velhos atores como o Banco Mundial, que cada vez mais têm incidência politica na defesa da privatização da educação em lugares estratégicos de tomada de decisão.

E se verifica que a atuação desses atores é ampla, articulando-se com os grandes meios de comunicação de massa no sentido de desqualificar o significado público da educação, defendendo-a como um bem de consumo individual, que tem um valor a ser pago, bem como divulgando sistematicamente que a educação privada é mais eficiente, conseguindo assim que boa parte da população não se envolva na luta pela melhoria e pelo fortalecimento da educação pública e resultando num aumento sistemático das matrículas em escolas privadas, em todos segmentos populacionais.

A privatização também atua de forma direta nesta disputa simbólica, através da implementação de iniciativas como as Escolas de Baixo Custo, que se caracteriza como um “sequestro” da educação, a partir da implantação de escolas em comunidades empobrecidas e onde o Estado não tem condições de implantar escolas públicas e gratuitas.

Esse modelo vem sendo replicado na África e na Ásia e vem chegando a alguns países da América Latina, caracterizando-se pela ausência de professoras/es qualificadas/os, que atuam como repassadoras/es de conteúdos padronizados por manuais; pela diminuição da carga horaria de ensino; realizada em lugares (e não obrigatoriamente escolas) com infraestruturas precárias; por ausência total de perspectiva de educação cidadã; e voltada para uma qualificação da mão de obra barata para atender as demandas identificadas pelas empresas que fomentam esse modelo.

Ao mesmo tempo em que essas iniciativas procuram replicar tais práticas enquanto sistemas educacionais, os atores privados ampliam suas margens de lucro, pois mesmo sendo de baixo custo, essas escolas atendem a um número muito grande de pessoas em situação de pobreza e, mesmo atendendo a populações que estão em áreas carentes e caracterizada pela ausência do Estado, são iniciativas perigosas, pois podem deixar de ser uma situação de exceção e se tornar um sistema institucionalizado enquanto política pública pelos governos.  

Outra perspectiva que vem ganhando força em vários países da América Latina, como no Equador, é a implantação de escolas centralizadas, que resulta no fechamento de escolas menores, localizadas em comunidades rurais e indígenas, a partir de um argumento de ganho em escala, quando se tem escolas maiores, em localidades maiores e mais urbanizadas, através de turmas maiores e gestão centralizada. Os defensores desse modelo e dessas iniciativas argumentam que essa centralização favorece a implantação de processos pedagógicos inovadores, de melhor qualidade e dedicação de maior tempo para o ensino e aprendizagem, mas o que se verifica na prática é uma padronização que implica na perda do sentido da diversidade cultural das comunidades que têm suas escolas fechadas, com a perda de suas identidades enquanto processo educativo. Além disso, força-se um distanciamento dessas escolas de suas comunidades, quando em muitos casos, as crianças, adolescentes e jovens necessitam se deslocar até 5 horas, muitas vezes caminhando, para chegar às mesmas.

Na prática, o ganho de escala, nesse caso, nem sempre se verifica, pois geralmente a construção dessas escolas se dá com custos maiores do que o planejado e quase sempre são realizadas pela iniciativa privada, que não só ganham com a construção das infraestruturas, mas que também incidem para prestarem serviços relacionados à padronização dos conteúdos curriculares, para a formação dos professores e para a implementação dos processos “padronizados” de avaliação, que se fortalecem a partir do crescente fascínio dos governos pelos sistemas avaliativos impulsionados pelo Programa Internacional de Avaliação Comparada (PISA), coordenado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Essas avaliações, por sua natureza, não atendem a diversidade das realidades da América Latina e do Caribe, e sua finalidade principal é criar ranking comparativo de desempenho entre os países que as adotam.

Além disso, cada vez mais se verifica uma presença das universidades privadas liderando, de forma articulada com as fundações empresariais, esses processos avaliativos bem como assessorando, em forma de consultoria paga, os processos de reformas educacionais mais amplos.

Outra questão importante no que diz respeito aos sistemas públicos educacionais, é a gestão democrática. Ao mesmo tempo em que se verifica uma crescente ampliação dos espaços para a participação, com a constituição dos conselhos nas escolas, nas municipalidades e para o controle social das políticas educacionais em diferentes níveis, na prática, verifica-se que a natureza desses conselhos é meramente consultiva, sem poder de deliberação para a tomada de decisões, enquanto a iniciativa privada, cada vez mais, aumenta sua influência nos espaços que verdadeiramente decidem sobre a aplicação de recursos e os formatos dessas políticas.

A partir desse contexto, as organizações e pessoas que participaram desse debate promovido pela CLADE no âmbito de sua IX Assembleia, elaboraram as seguintes recomendações:

1.    Fortalecer o sentido público da educação, entendendo que o público não se restringe ao governo e que, por isso, deve envolver todos os segmentos imbricados na educação pública, especialmente estudantes, pais e responsáveis. Nesse sentido, deve-se ampliar e fortalecer a escuta de jovens e todos os segmentos que estão excluídos dessa consulta, como populações indígenas e LGBTI. Há que trabalhar com pais e responsáveis, a partir de organizações comunitárias, para que os mesmos tenham maior capacidade de entender sobre os riscos da privatização dos sistemas educacionais.
2.    Criar formas diferenciadas de comunicação para divulgar os riscos da privatização, mercantilização e precarização da educação a partir das escolas de baixo custo, priorizando as/os professoras/es para essa comunicação, pois serão as/os mais impactadas/os devido à substituição de sua contratação pela seleção de outros profissionais não qualificados, além da redução dos seus salários e das restrições impostas com relação à não sindicalização, inclusive cerceando-se o seu direito de protesto a partir da criminalização dos movimentos mobilizados em defesa da educação pública e gratuita.
3.    Gerar diagnósticos e estudos nas escolas ditas de referência para comprovar que essas não estão atendendo às melhorias da educação, como divulgam os governos, e identificando as desvantagens da ação privatista nesses modelos educacionais.
4.    Ampliar e fortalecer a incidência em defesa do Estado enquanto garantidor chave do Direito Humano à Educação. Para isto, essa incidência deve considerar as políticas educacionais e o papel dos governos na implementação das mesmas.
5.    A CLADE deve aprofundar os princípios que norteiam o conceito sobre educação pública, inclusive a partir dos indicadores que compõem as metas do Objetivo 4 da Agenda 2030 dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável.
6.    Considerando que a disputa simbólica e efetiva contra a privatização não se limita aos aspectos financeiros, mas também se refere aos currículos, recomenda-se que nessa análise possam-se criar novos indicadores para aprofundar o debate sobre a disputa nesse âmbito e utilizar os mesmos em estudos comparativos sobre situações distintas e sobre níveis diferenciados da privatização nessa dimensão.